COVID e o Desporto: durante e após. A pressão do Futebol e a ginástica de trampolins!

“(…) Poderá ser uma oportunidade única de fazer um reset ao paradigma instalado e de nos aproximarmos do resto da Europa e do mundo desportivamente avançado, mas isso vai implicar dores de crescimento (muitas). (…)”

Aúncio: Tendo em conta os ânimos inflamados que pairam pelas redes sociais, declaro que este texto pretende ser uma reflexão, não uma certeza absoluta. Certeza é algo que não nos podemos gabar de ter nos dias correntes e as quase certezas são, pelos mesmos dias, coisas efémeras.
Declaro ainda que as saudades do regresso ao pavilhão são imensas, o cheiro dos equipamentos, a energia, os desafios e que quero tanto regressar como todos os outros. E este texto é uma reflexão que pretende ver os dois campos em simultâneo: o da gestão dos clubes e o da pratica desportiva.

O COVID transformou um ano que seria de festa, de competição, de desafio, superação e expetativa, com o expoente máximo na realização dos Jogos Olímpicos num dos países mais organizados e evoluídos social e economicamente – o Japão – num mundo de incertezas desportivas. A tal ponto que o maior evento do mundo teve de ser adiado por um ano, para o verão de 2021.

É uma situação totalmente nova e desconhecida nos tempos modernos, que possivelmente só se assemelhará aos tempos vividos durante as grandes guerras, embora de natureza diferente. Sendo que da última, comemoramos há poucos dias os 75 anos do seu término, pelo que a memória coletiva das suas condicionantes e efeitos seja já residual. Mas ainda não chegamos perto desses tempos, nem em dureza, nem em duração e espero que fiquemos tão longe quanto possível.

Mas estamos parados. Uns confinados, outros com possibilidade de sair de casa, mas limitados e muito nas suas práticas pessoais, à espera de que possamos voltar à atividade. E é aqui que quero centrar esta reflexão, no regresso à prática desportiva organizada ao mesmo tempo que esperamos que esta pandemia esteja controlada e que sejam minimizados os seus impactos na saúde publica e na população.

E começo pela pressão do futebol, a má pressão do futebol profissional. Melhor dizendo a má pressão do futebol profissional dos pseudo ricos, pois os outros profissionais (os da segunda) já se acomodaram e se venderam em conjunto com as restantes divisões e associações em troca de uma reestruturação geral dos campeonatos, para evitar descidas de divisão, que curiosamente já é pedida há muito tempo. Tempo esse que nunca houve, mas que agora num par de meses se resolveu.

A pressão do futebol que só existe porque nos regemos pela clubite e não pelo desporto em si. Não fora o FCP estar à frente do SLB por um ponto, e o SLB atrás do FCP por esse mesmo ponto, para cada um reclamar a necessidade do circo continuar, ao que se juntam os restantes clubes da Primeira Liga, e não se dar por terminada a época desportiva como aconteceu em todas as outras divisões e modalidades profissionais e amadoras.

Este mau exemplo, suportado pelo poder político que a FPF exerce sobre toda a estrutura governativa, das autarquias, ao governo e à oposição, impele nos restantes agentes desportivos a angustia da necessidade regressar o quanto antes à atividade, sabe-se lá em que termos e com que consequências.

Os grandes clubes vão ter prejuízos? Acredito que sim, mas também os pequenos e possivelmente com efeitos relativamente superiores, pois terão muito menos condições de fazer face a estes. Por isso a justificação de que há muito em jogo, não pode pegar.

Quantos clubes de bairro vão fechar e não vão poder reabrir? Quantos clubes com peso significativo nas suas localidades vão fechar, ou despedir funcionários, ou fechar classes para não as reabrir tão depressa? Quantos destes clubes vivem na incerteza se terão clientes com disponibilidade financeira para apagar as mensalidades já por si escassas para o custo do desporto que se quer no sec. XXI, seja ele de competição ou de recreação?

Isso sim, deveria ser uma preocupação, pois estes clubes, de rua, de bairro, de cidade são a base do sistema desportivo nacional, são eles que semeiam, formam e alimentam em grande parte das modalidades o SCP, o FCP, o SLB e outros gigantes deste Portugal, com desportistas que ali têm o seu primeiro contato com uma determinada modalidade, que ali fazem as primeiras escolhas e as primeiras seleções. Estes gigantes não existem sem os demais.

Ora como estes clubes de dimensão bem mais reduzida sentem necessidade de fazer aquilo que melhor têm feito até à data: sobreviver a tudo e a todos, a todo o custo, exercem na sociedade em que se inserem uma pressão social para que lhes seja permitido o regresso à atividade. E esta pressão é uma onda que sobe gradualmente pelas instâncias acima, passando pelas autarquias, clubes maiores, associações territoriais e federações: que se veem na necessidade de dar respostas aos seus filiados e de procurar satisfazer os seus intentos, porque “o pais tem de andar para a frente!”.

O início do pós (ou o retorno ao novo normal)
E a onda volta para trás, num conjunto de normativos, impostos pela DGS primeiro, adaptados depois pelas federações e municípios, com um conjunto de recomendações para o retorno à atividade “em segurança”. As altas instituições ficam salvaguardas pois criaram manuais de procedimentos e planos de contingência com o que se deve fazer e deixam, aos já de si mais frágeis, a responsabilidade de implementarem esses mesmos normativos.

Se a primeira reação é de esperança e entusiasmo porque se começa a ver uma luz ao fim do túnel. A segunda, é de questionamento, pois a complexidade destes normativos é tal que tendem a tornar a prática do desporto comum, altamente impraticável, a pesar da boa vontade e qualidade técnica colocada na sua elaboração.

Vejamos o caso da Ginástica, onde a FGP fez um trabalho excecional (isto não é ironia) na elaboração de um plano de contingência em três fases, para quando houver abertura para que os ditos desportos de pavilhão possam voltar. E ainda apresenta alguns apoios que são de monta significativa para o orçamento da federação, mas que simultaneamente terão um impacto simbólico na vida de cada clube, pois serão manifestamente insuficientes para fazer face à realidade se prevê existir, pelo que assumo como simbólicos e um sinal de solidariedade institucional para com as dificuldades que os clubes irão enfrentar.

Nesta primeira fase denominada como “Regresso aos Treinos” são apresentadas 32 recomendações gerais e 6 especificas, num total de 38 considerações para que a prática possa começar altamente condicionada. Se algumas são de fácil aplicabilidade, outras apesar de aparentemente simples, objetivas e razoáveis, têm implicações avultadas na vida do clube.

Da análise do mesmo resultam várias questões de ordem prática e que tornam o regresso à atividade dos clubes, algo extremamente complexo, pouco exequível e que levantam aos clubes vários problemas:
– Encargos adicionais, com material desinfetante de uso pessoal e coletivo, e outros materiais de autoproteção individual e coletiva;
– Encargos adicionais com recursos humanos, por via da necessidade de realização dos trabalhos de desinfeção, que passarão a ser recorrentes, assim como do desdobramento de classes;
– Diminuição do número de praticantes. Face ao número de ginastas possíveis por treinador e por sessão, ou em função do espaço, isto vai causar uma quebra significativa no número de ginastas que poderão praticar a atividade. Recordemos que 95% dos treinadores não são profissionais e como tal não poderão dividir os ginastas por todo um dia de treino (para além de que estes estão na escola – em casa, mas na escola). No meu caso, que trabalho até às 17:30 e estava depois no pavilhão, diáriamente, das 18:30 às 22:00 como posso fazer os desdobramentos? Bem sei que é uma pergunta que deve ser retórica e que devo ser eu a responder, mas isso leva a outras sub questões, mais de fundo e para reflexão coletiva:
– Reduzimos o tempo de prática?
– Reduzimos o número de ginastas?
– Selecionamos os ginastas?

E na resposta aparecem ainda mais questões, o tal retorno da onda:
– Estão os principais financiadores do desporto português – os pais – disponíveis para pagar o mesmo por menos tempo de prática? Ou terão sequer condições?
– Havendo menos ginastas, mas mais encargos materiais e humanos, nomeadamente o mesmo número de horas de trabalho dos treinadores e restantes funcionários, como farão os clubes para suportar tal encargo? Na próxima época vai haver ainda menos disponibilidade financeira das autarquias e eventuais patrocinadores para o apoio à prática desportiva;
– Diminuição das condições de segurança, pois não é possível estar no raio de ação ginasta (colchão de suporte sequer – pois quer o treinador ou outro ginasta ficam debaixo da “bolha” do executante);
– Relatividade da segurança. Há disciplinas que têm de treinar com máscara obrigatoriamente e outras em que tal é impossível, aumentando o risco para os intervenientes;
– Diminuição do tempo de prática efetiva – para além de um desdobramento anunciado do número de ginastas, a complexidade das tarefas a realizar antes, durante e depois do treino por todos os intervenientes conduz obrigatoriamente a uma redução dessa prática;
– Estarão os pais disponíveis para se submeter a todas estas regras, tarefas e responsabilidades para uma prática mais reduzida e proporcionalmente mais onerosa?
– Espírito desportivo e de solidariedade coletiva. Vai haver clubes com condições diferentes de levar por diante esta prática. Haverá aqueles, que mesmo que queiram não terão os espaços disponíveis por ação das autarquias, por exemplo. Existirão aqueles que das recomendações elencadas tomarão para suas o mínimo dos mínimos e outros que aplicarão todas. Haverá ainda aqueles que só se preocuparão com o rendimento desportivo e que voltarão com meia dúzia de ginastas e outros que tentarão abranger o máximo, condicionando o rendimento. Se por si só já existem assimetrias nas condições dos clubes, esta situação poderá acentuar as mesmas.

É certo que tudo isto chama à responsabilidade de cada um dos intervenientes, ao bom senso… mas estou em crer que o custo em diversos campos desta retoma desejada e necessária será muito superior ao retorno que teremos da mesma.

Estas questões serão transversais a todas as modalidades. Reforço que a FGP fez um excelente trabalho, mas será exequível no terreno aos clubes de ginástica e de outras modalidades voltarem à prática? Como fazer nas instalações onde se cruzam simultaneamente 4 ou 5 modalidades/classes ou até mais, com características tão distintas e necessidades semelhantes? Não podemos olhar apenas para cada um, mas também para o universo local.

Algumas contas simples, que podem ajuda à reflexão
Exemplo 1: Clube com 100 ginastas. Classe de Competição; 1 Treinador para 4 ginastas; 1h30 por dia, 4x por semana
Tempo de prática mensal (assumindo 4 semanas unicamente): 24h
Custo de um treinador de competição por hora: 8€ – sim é um balúrdio, somos todos ricos. Possivelmente há quem ganhe mais e também bem menos, por isso vou assumir como um valor médio.
Custo de um treinador por mês: 192€
Custo simples por ginasta: 48€
Outras fontes de receita: 0 (não há bares, não há centros de estudo, não há transportes…)
Outras despesas que ainda não estão contabilizadas: outros RH do clube, outras despesas fixas do clube; todo o novo equipamento de autoproteção e proteção coletiva em que é necessário investir; bem como a nova despesa com a manutenção dos equipamentos
Ou seja, o custo por ginasta, sem qualquer margem para o clube poderá chegar aos 60€. Quantos encarregados de educação terão essa disponibilidade?

Exemplo 2: Clube com 100 ginastas. Classe de Formação; 1 Treinador para 4 ginastas, 1h por dia, 2x por semana.
Tempo de prática mensal (assumindo 4 semanas unicamente): 8h
Número de horas disponíveis para classes de formação: 18h – 20h (Antes é impossível porque há outros compromissos, depois é tarde demais) ou seja, 10 por semana, 40 por mês
Máximo de classes/ginastas possíveis: 5 classes, 20 ginastas… eventualmente, havendo espaço no ginásio: 10 classes, 40 ginastas. Mais do que isso já não permite a gestão dos espaços de circulação nem a manutenção das áreas de segurança.
O que fazer aos restantes 60? Qual o critério ético/moral, para poder dizer que nem todos terão acesso à prática?

Tendo em conta a grande maioria da realidade dos ginastas ao nível nacional, pergunto se há necessidade de manter a pressão na existência de competições ainda este ano, agora que estão cancelados os eventos FIG e EG?

Pergunto se é desejável esta pressão social para o retorno à prática, aumentando o risco social das comunidades onde nos inserimos, pois por mais cuidadosos que sejamos, estamos a exponenciar os riscos.

Pergunto se é preferível gastar energia e recursos num retorno precário em termos desportivos e económicos, apressado e arriscado ou reservar esses recursos para que um retorno mais saudável, mais estruturado, mais sustentável. É preferível correr o risco de regressar para provocar uma nova paragem breve que pode causar estragos ainda maiores?

Já indagaram os clientes (não se esqueçam que são os encarregados de educação, pois são estes que pagam e que tomam as decisões) se, abrindo, estariam disponíveis para inscrever os filhos, em que condições e por que montantes?

2020 é um ano perdido e 21 será um ano ainda assim condicionado. É meu entendimento que quanto mais se apressar o regresso a uma ilusória normalidade, mais tardio será o fim das limitações.

Estamos a duas semanas de junho, vale a pena apressar o regresso para esta grande maioria dos ginastas por apenas um mês de prática, com os enormes encargos e adaptações a isso inerentes.

Obviamente que o aparecimento de uma vacina ou de um tratamento eficaz e eficiente poderão reverter todas estas dificuldades e antecipar o regresso à normalidade o quanto antes. Isso, seria o desejável. Mas até lá… valerá a pena esta ansiedade?

Definir protocolos e medidas, por muito bem estudados que estejam, altamente complexos para que cumpram todas as recomendações para que possamos voltar aos treinos, sem serem tidas em conta os impactos económicos colaterais é razoável?

Os treinadores só querem treinar.
Os ginastas só querem treinar.
As federações só querem voltar.

Aguentem-se os clubes, que literalmente terão de fazer ginástica para que entre a pressão do regresso e a pressão da sustentabilidade, consigam sobreviver. (e aqui uma palavra de solidariedade para com as autarquias, que irão ser o outro intermediário a ver as despesas a crescer)

Já vai, demasiado longo, fica a reflexão.
Uma nota de positivismo, para quem aqui chegou, ultrapassar esta crise vai ser uma prova de resiliência, de renovação a vários níveis do paradigma do desporto amador português. Poderá ser uma oportunidade única de fazer um reset ao paradigma instalado e de nos aproximarmos do resto da Europa e do mundo desportivamente avançado, mas isso vai implicar dores de crescimento (muitas).

Saudações desportivas,
Fernando Gaspar

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